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Minha foto
Louca/Estranha/Anormal/Distante/Fria/Egocêntrica E muitas outras mais... Autora de Angelus, Tokyo Revivers e A Cor da Lágrima, codinome: Horigome Namika

quarta-feira, 31 de março de 2010

     Todos - homens e mulheres, jovens e velhos - estavam enfileirados em pleno meio-dia esperando uma acareação. As três forasteiras não eram exceção, principalmente uma delas, que exibia um sorriso vitorioso, como uma criança que faz travessura.
   - Você tem ideia da merda que você fez? - murmurou Lena, entre os dentes. Afinal, explodir uma fábrica inteira só seria obra dela.
   - Aff... - Vicky deu um muxoxo fazendo cara de "vocês falam demais, eu prefiro agir" - Se eu não destruísse aquela porcaria ninguém ia fazer. Cansei do blá blá blá.
  As duas se calaram quando um soldado passou por elas carregando um fuzil.
  - Hoje, um de vocês agiu com muita... imaturidade... falta de respeito... ingratidão! - começou o capitão. Era um homem de meia idade, alto, alguns fios grisalhos, um monóculo e uma porção de insígnias na farda. Falava austeramente, e todos os cidadãos tinham certo temor dele - Posso garantir que o culpado será acusado de traição à República da Terra.
    As crianças se escondiam nas barras das saias das mães. Mesmo os homens tremiam quando em presença do capitão.
  - Tem ideia do que fizeram? - continuou - Traíram sua nação, seu povo! Era essa fábrica que garantia que vocês, almas desgraçadas continuassem a viver! E agora, espero sinceramente, que caiam na mais profunda miséria! Porém... se alguém se acusar ou souber do verdadeiro culpado... mostrarei clemência pelo povo...
   Ninguém se movia, afinal ninguém sabia quem poderia ter feito tal ato... a não ser que não tivessem vindo da cidade...
  - A mulher loura... Aquela da ponta! - disse alguém - Não estava aqui na hora que a fábrica explodiu.
   As atenções voltaram-se ao trio. O capitão apenas deu uma ordem: prendam-nas. Lena deu um passo à frente para garantir seus direitos, mas Agatha se adiantou.
  - Não podem nos prender sem provas!
  - Silêncio garotinha! - ameaçou o capitão - Aqui é a minha terra, eu mando aqui e nem a sua coroa de princesa garante algo aqui!
  - Parabéns Vicky - murmurava Lena.
  - Qual o problema? Eu que mandei essa porra pelos ares mesmo.
  As duas se atracaram antes mesmo que os soldados viessem. A multidão se aglomerou para ver: o capitão atravessava por entre os curiosos para colocar ordem na baderna.
  Lena e Vicky brigando? Sim, elas viviam se estranhando. Mas desta vez, a luta simulada entre as duas eram parte do plano. Vicky sacou a arma e apontou para a cabeça do capitão, enquanto os soldados não abaixassem as armas.
  Mas um soldado ao fundo viera avançando, oculto. Já engatilhara a arma: atiraria pelas costas de Vicky e colocaria de vez um ponto final nessa insurreição. Seus planos foram frustrados uma vez atingido por uma barra de ferro empunhada por Bruce. Os soldados viraram-se para atirar, mas tiveram de se ver com a fúria dos populares. 
   Em pouco tempo, estavam todos rendidos e amarrados por cordas. Vicky arrombou o quartel, toneladas de moedas em ouro, prata e bronze, além de inúmeros alimentos e remédios estocados. O povo se organizou para receber tudo, enquanto os soldados e o capitão permaneciam amarrados na praça sob o sol escaldante.
   - Traidores! Marginais! Saqueadores! O governo pronvincial ficará sabendo dessa insurreição. Vocês serão todos presos e terão as cabeças cortadas.

    As injúrias do capitão só foram caladas por uma bota de mulher. A mesma mulher loura que começara aquilo tudo.

  - Não sabemos como agradecer: senhorita Brown, senhorita Valentine, Princesa... Graças à vocês, não mais teremos que nos submeter às vontades do exército corrupto.
  - Não se preocupem... Amanhã iremos nos encontrar com o rei e eu farei questão de alertá-lo da corrupção em seu país... Minha mãe sempre disse que o rei é justo, ele ouvirá meus apelos...
  - Mas agora que já fizemos o trabalho duro - observou Vicky - o que vão fazer agora?
  - Pretendemos limpar o rio, voltar a plantar e a criar animais... logo as pessoas não vão mais adoecer e não teremos mais que suportar os soldados corruptos - respondeu Bruce.

   As jovens conseguiram montaria, ou melhor, pegaram as dos soldados corruptos. Agatha foi a última a deixar a cidade, com um sorriso estampado no rosto e a alegria de ter ajudado mais pessoas, mesmo que elas não fossem seus súditos.
   - Quer andar fofa? - alertou Vicky - Precisamos chegar amanhã à capital!
  
   As horas voaram, a madrugada não foi hora para dormir. O dia raiava quando chegaram à Capital. Ela se localiza no alto de um grande planalto, cercado por um gigantesco fosso. Havia uma ponte que baixava e funcionários que verificavam os documentos de cada cidadão que entrava.
  - Pra que toda essa burocracia? - perguntou Agatha
  - A Capital é a maior cidade da República da Terra e a mais rica também... além disso há o temor de invasão por parte do Império do Fogo por meio de espiões...
  
  

domingo, 28 de março de 2010

     A viagem seria muito desconfortável se não fosse Vicky Valentine. Ela "convenceu" o condutor de uma charrete de mercadorias a dar-lhes carona até alguma cidade perto da capital. A manobra deu certo: no final do dia, na paisagem deserta esboçavam-se algumas colinas e alguns pontos verdes, sinal de que deixavam o deserto e aos poucos se aproximavam da Capital.
   Era uma cidade entre várias colinas, um vale. Mas ao contrário do que se pensa dos vales, aquela vila não parecia nada bonita. As casas eram todas muito pobres, a fumaça dominava a atmosfera e o rio, se é que se podia chamar de rio, se restringia apenas à um veio de esgoto.
  - Puta cidade fedorenta! - resmungava Vicky, tampando o nariz com um lenço.
  - Pára de falar palavrão, Vicky - repreendeu Lena, que também protegia o olfato do odor putrefato do local.
  Agatha avançava por entre a leve fumaça de esgoto. Nos caminhos tortuosos e sujos, ruas vazias. Sequer anoitecera e as casas estavam todas fechadas, dando a impressão de uma cidade fantasma. 
  Seus olhos castanhos repararam no simples abrir da cortina de uma das casas. Agatha correu a bater na porta, era a única casa que dava sinal de vida.
  - Ei, ei - Agatha chamava, batendo com as mãos na porta - Somos viajantes, precisamos de pernoite, não sabe onde podemos...
  A porta abriu revelando um homem de uns vinte e poucos anos, barba mal feita e um macacão sujo de óleo. Atrás dele, a pessoa que vira abrir a cortina outrora, um menino.
  Bruce era mecânico, morava numa das simples casas da Vila. Não tinha muito luxo, ele dizia, todos na cidade mal tinham dinheiro para comer.
  - E ainda temos de pagar altos tributos pro Exército - explicava.
  - Como assim, pagar tributos? - estranhou Agatha - Os soldados recebem soldo do governo da província e do governo geral, e ainda exploram a população.
  - Isso não é nada, fofa! - interveio Vicky - A República da Terra está jogada às traças, os soldados, quando não se vendem ao Império do Fogo, exploram seu próprio povo. 
  - E ainda mandam na cidade... - continuou Bruce, com tristeza - Desde que o nosso líder morreu, eles tomaram de conta daqui... Além de nos exigir dinheiro, pegam nossos filhos, humilham nossas mulheres, chantageiam a todos, declaram toque de recolher.
  - Toque de recolher?!?!? - perguntaram, incrédulas, as três moças. Toque de recolher ao pôr-do-sol.
  - E essa fedentina que domina esta cidade? - perguntou Vicky, levando um cutucão de Lena - O que foi? Essa cidade fede ou não?
  Bruce suspirava:
  - Há muitos anos, um regente pronvicial instalou a fábrica de chumbo, sabem, há chumbo debaixo do leito do rio... enfim, a indústria existe a mais de cinquenta anos e ainda utiliza tecnologia velha... eu mesmo trabalho lá. Por causa da indústria, nosso ar é podre e nosso rio não dá mais peixes, e as crianças vivem doentes.
  Uma lágrima escorreu pelo rosto de Lena. Aquele lugar, mesmo a quilômetros de distância, era muito parecido com sua vila natal onde as pessoas eram exploradas e adoeciam e os peixes eram podres.
  
  Aquela cidade definitivamente não tinha feito bem, principalmente à Lena e à Agatha. Vicky escondia, mas também estava comovida com tamanha injustiça.
  - Deve ter um jeito de ajudar esse povo - dizia Agatha - Não tem como passar por aqui e ficar de braços cruzados!
  - Você tem razão Agatha! - concordou Lena - As pessoas estão sofrendo e nem podem contar com seus governantes... eu não quero nunca mais ver isso na minha vida.
  - Ah não gente, por favor - rebatia Vicky - Temos de chegar à capital depois de amanhã e vocês querem ajudar esse gente pobre? Não podemos fazer nada, entenderam? Uma princesa, uma nerd e uma ladra podem enfrentar um exército todo sozinhas?

   Agatha e Lena tiraram o dia pra fazer caridade. Enquanto a morena ajudava as crianças com remédios e cuidados paliativos, Agatha ainda tentava dialogar em vão com o comandante-em-chefe da cidade. Vicky, por sua vez, não fora vista desde o nascer do Sol.
  Para o desagrado de Lena, as crianças sofriam de doenças de pele bastante graves, além de doenças respiratórias complicadas. 
  - E então? - perguntava Lena à Agatha, já presumindo a resposta ante a expressão desanimada da garota - Conseguiu falar com o comandante?
  - O Capitão deu uma série de desculpas... na certa achando que eu ia engolir aquilo né? - contou Agatha.
  - Pelo que estou verificando, as pessoas não vão melhorar enquanto a fábrica não for fechada e o Exército não parar de maltratar os outros...
  
  Força de expressão? Ou de pensamento? Só Deus sabia... Mas a terra tremeu, primeiro com fracas vibrações... depois... ganhou as dimensões de um terremoto considerável. No horizonte via-se a fábrica tombar tal como um castelo... a cidade recobria-se de pó...

sábado, 20 de março de 2010

     Cada uma falava alguma coisa, lutava com alguma gana para não ficar lá.
   - Vocês sabem com quem estão falando? Eu sou Agatha Vizcov Tess! Princesa e herdeira do trono do Reino Suspenso do Ar!
   - Vocês não podem sair prendendo as pessoas desse jeito! - protestava Lena - Eu tenho direito a um telefonema e a um advogado, entendeu?
  As palavras das duas entraram por um lado e saíram por outro. Os soldados as empurraram para dentro da cela. Escura, suja, cheia de limo e mofo. De longe, o pior lugar onde já estiveram.
 Vicky demorou mais um tempo a entrar. Os soldados passaram um bom tempo revistando-na, tirando pistolas ocultas em todos os lugares possíveis: no decote, nas meias... até nas calçolas havia um pequeno cinto onde ela guardava duas mini-armas.
  Passada a revista, ela foi empurrada para dentro da sala onde estavam as outras duas. Isso sem perder a pose.
   Vicky Valentine olhou a sala de cima a baixo expressando asco por tudo que vira. Apenas sentou-se num dos bancos de concreto, cruzou as pernas, e cantarolou alguma coisa. Sua voz só foi calada quando as mãos de uma morena possessa agarraram seus cabelos.
  Lena arrancou-lhe dois ou três chumaços de cabelos antes de ser apartada por Agatha. A loira passava as mãos na cabeleira, e resmungava:
  - Ficou doida?? O que eu fiz pra você?
  - O que você fez? Você ainda tem a audácia de perguntar o que você fez? Por sua causa estamos nessa situação!
  - Minha causa? - defendeu-se Vicky - Eu nunca te vi na vida garota! A única que eu prejudiquei foi essa garota aí.
  Vicky apontou para Agatha, sentada no banco que tinha seu olhar distante e vago. A loira se ajoelhou em frente a ela, e, unindo suas mãos às dela, pediu perdão:
  - Foi malz aê.
  Lena levou a mão à cabeça, repugnando-se da atitude da outra. "Foi malz aê, é tudo o que ela fala?" pensou.
  - Se eu quisesse teria matado ela fácil, fácil - disse Vicky, como se estivesse lendo a mente das duas - Mas não quis... Não mato as pessoas por causa de outras... principalmente por causa do Oliver.
   - Oliver? - perguntou Agatha, despertando do aparente transe - Você quis dizer Oliver Gardner?
   Vicky confirmou com um aceno. Lena levou a mão à cabeça mais uma vez. 
   - Então ele mandou você me matar! Por quanto?
   - 500 moedas de ouro iniciais e mais 500 quando terminasse. - respondeu Vicky.
   - E naturalmente não terminou o serviço porque viu o monte de grana que poderia ganhar com as coisas da Agatha né?
   Vicky deu de ombros. Não queria admitir, mas sim, a morena de gênio forte estava certa.
  - E onde estão as coisas que você roubou?
  - Deixe-me ver... - pensava Vicky, com a mão no queixo e olhando pra cima - A tiara ainda tá comigo, ou melhor, tava, porque os policiais pegaram quando me revistaram...
  Agatha soltou um suspiro de alívio. Não seria nada bom se a tiara real do Reino Suspenso do Ar estivesse por aí. 
  - Tinha um convite pro baile real lá na capital... esse eu tive que dar pro atravessador... miserável!
  Agatha abriu a boca estupefata. Vicky roubara o convite que lhe permitia a audiência com o Rei, conforme a mãe pedira. E agora, o que faria?
  - Também tinha um colar muito bonito, com um rubi desse tamanhão ó! Esse aí me rendeu uma boa grana, quase quarennta moedas de ouro!
   Lena tentou mais uma vez pular no pescoço de Vicky. Agatha se debulhou em lágrimas, tinha aquele colar desde muito cedo, desde que era uma criancinha. Sua mãe lhe dizia que era uma herança de família.
   
   Não era possível determinar quanto tempo havia se passado. A noite terminara... o dia estava raiando. Nenhuma das três jovens dormira... estavam todas com olheiras notáveis. A mais jovem das três tinha seus olhos castanhos inchados do choro. A morena andava de um lado para o outro, enquanto a loira vez ou outra cantarolava alguma coisa.
   - E se a gente fugir daqui hein? - sugeriu Vicky - Já notei que a garota ali é inteligente, podemos bolar um plano e dar o fora daqui.
  - O que? Sermos foragidas da justiça? - estranhou Lena.
  - Qual o problema? Nós já estamos sendo caçadas pelo Império do Fogo!! Aliás, se demorarmos aqui, logo logo seremos entregues para os soldados e nossas coisas serão vendidas!
   - Ela tem razão - concordou Agatha.
   
   O cheiro ocre no ar, as celas oxidadas, as paredes cobertas de musgo e desenhos obscenos e pra completar a horrível lavagem servida aos detentos. Estavam na última e na pior cela do corredor escuro: os policiais morriam de medo da má influência de Vicky Valentine, um motim seria o fim. 
   Foi a distância e o afastamento que contribuiu para que as moças arquitetassem um plano simples, mas que necessitava de toda a habilidade de Agatha, habilidade que nem mesmo ela sabia dominar.
   Suas mãos queimavam... já estavam vermelhas... poderia reclamar da dor? Não, isso seria injusto. Não apenas fugiriam, teriam que recuperar a tiara de Agatha e as armas de Vicky. 
   A de baixo estava solta, as condições da barra de metal contribuíram fortemente para isso. Usar o dom de fogo nas mãos da princesa foi uma ideia boba de Lena, mas que as outras duas acataram com satisfação. No período da tarde, onde os policiais não as importunavam, Agatha terminou o serviço na parte de cima. Pronto! Duas barras soltas seria o suficiente para que as três estivessem livres da cela.
   Conforme Vicky Valentine, a madrugada seria a hora perfeita. Não ficavam muitos soldados guardando a delegacia, e os que ficariam, com certeza estariam sonolentos demais. Dito e feito. As duas barras de metal que Agatha derretera usando os dons de fogo foram removidas e uma a uma, elas avançavam pelo corredor escuro, com ligeiros passos.
   Assim como Vicky previra, haviam dois soldados. Um cochilava com profundos roncos. O outro resistia a dormir, sentado na cadeira fazendo palavras cruzadas. 
   Vicky deslizou até o dorminhoco e apertou com demasiada força o pescoço gordo. O homem despertou assustado, a face pouco a pouco se avermelhando. Quando o companheiro se moveu, Agatha e Lena imitaram a companheira: Lena segurou-o pelos braços, enquanto Agatha pegava a arma. A princesa apontou para a cabeça dele, arrancando um sorriso de Vicky, que fizera o mesmo.
  - Estouro seus miolos se não devolver nossas coisas! - ameaçou Vicky.
  Lena soltou o outro e olhava ameaçadoramente para os soldados, na mira de duas garotas.
  O gordo apontou para a gaveta embutida na mesa, sinalizando que a chave estaria ali. Lena abriu-a e pegou a pequenina chave de zinco. Depois, o gordo apontou para um velho armário oxidado.
  Lena abriu o armário e tirou seis pistolas de diversos tamanhos, um colete de balas, e várias bolsinhas com facas e canivetes. Tirou também a mochila da garota e seu arco desmontável.
   - Agatha, abre todas as celas! E você, senhorita certinha, pega as chaves do almoxarifado e pega tudo o que puder!
  - Peraí, Vicky! Vamos libertar bandidos e roubar a polícia?
  - Lena - interveio Agatha - Esses policiais são corruptos, certamente há pessoas presas porque o Império do Fogo quer! 


   O sol esboçava amanhecer quando as três estavam a uma distância segura da cidade. Todas exibiam em seus rostos a expressão de insônia que as perseguia há dias. A poucas horas estavam em uma cadeia suja e podre, agora estavam num botequim de beira de estrada. Agatha saboreava torrada com leite, Lena bebericava café e Vicky já estava em sua segunda dose de rum.
  - Pra uma princesa até que você não é ruim! E nem você, senhorita nerd!
  - É Lena Brown! - corrigiu Lena - Lena Brown!
  - É, mas agora não temos dinheiro, e precisamos chegar à Capital dentro de dois dias e falar com o Rei!
  - É... e entrar de penetra no baile, já que ALGUÉM vendeu o convite... - ressaltou Lena, olhando categoricamente pra Vicky.
  - Já disse que foi mal! 
  - É, mas você deve tanto à Agatha que...
  - Você também saiu da cadeia graças à Agatha... - rebateu Vicky.
  - Querem calar a boca vocês duas! - pediu Agatha - Vocês falam, falam e falam, mas quem vai se ferrar bonito se não chegar à Capital sou eu. Não sei que tipo de coisa tem na correspondência da mamãe, mas tenho certeza que é alguma coisa muito importante!
  As duas suspiraram. Agatha tinha razão: não seria problema de nenhuma delas se Agatha chegasse ou não.
  - Eu sempre quis ir num baile real... Provavelmente muitos intelectuais estarão lá! - comentou Lena.
  - E muitos milionários também - completou Vicky.
  
   Agatha tirou da bolsa uma moeda de bronze, uma das únicas que sobrara. Pagou o consumido e se retirou do botequim. Ao seu lado ia Lena Brown, a intelectual e Vicky Valentine, a ladra. Companhia perfeita? Talvez não... Mas a partir daquele dia, os destinos das três estariam mais entrelaçados que uma simples fuga da cadeia ou um café da manhã num botequim de beira de estrada.

     Três dias haviam se passado e Agatha apenas se movia pela determinação de recuperar suas coisas. Estava ficando sem prazo: recuperar as joias e ainda ir à capital da República encontrar com um rei. Pedir ajuda à mãe? Não! A mentirinha inocente que tinha inventado agora tomava proporções incalculáveis. 
   Lena se queixava terminantemente do calor que assolava aquelas cidades nas proximidades do deserto. Agatha preferia não ouvir os lamúrios dela.


    Aquela cidadezinha se chamava Recanto das Pedras. Não se recordara de estar ali antes, mesmo que conhecesse o deserto como a palma de sua mão. Certamente estaria segura ali. Mas Oliver realmente a caçaria por todo o deserto?
   Optou por uma estalagem suspeita. Tudo ali parecia terrivelmente empoeirado e terrivelmente mal cuidado. Os donos eram velhos e mal humorados. Ficaram felizes em receber o punhado de moedas de cobre. A velha apenas resmungou enquanto subia com Vicky. "Mais uma dessas bonitonas, que chato!". 
   Vicky se deitou na cama pensando o quanto poderia ganhar: de tempo e de dinheiro. Estava numa cidade estranha, poderia enganar a quem quisesse. Quem sabe dar mais um golpe do baú em algum velho rico?


 Lena tocava a sineta sem parar enquanto batia o pé impaciente. Agatha olhava de um lado para o outro até achar o velho preguiçoso que dormia embaixo do balcão.
  A velha desceu da escadaria resmungando palavras sem nexo. Não pareceu muito feliz ao encontrar as duas paradas no hall.
  - O que vocês querem?
  - Não é óbvio? - ironizou Lena - O melhor quarto, por favor.
  - É caro. Três moedas de prata por dia! E sem comida!
  Lena tirou as três moedas e as colocou em cima do balcão. Passou pela velha resmungando.
  - Vai roubar pra ser feliz!
   Agatha continuou no hall olhando sonhadoramente para as pinturas na parede. Não tinha muito o que se ver: um papel de parede brega e descascado; pinturas baratas feitas por artistas de rua.
  - Vai subir não garota? - perguntou a velha.
  - Me desculpe senhora, só estava... vendo.
  - Deve ser mais uma riquinha!
  - Ela é a Princesa... - murmurou o velho vindo debaixo do balcão - Princesa do Reino do Ar.  
  
  Ideias eram coisas que lhe apareciam rapidamente. Bastava esfriar a cabeça que elas brotavam como flores na primavera. Precisava dar um golpe, não pelo dinheiro, mas para sua própria auto-estima: ficar muito tempo descansando não era de seu feitio e até lhe deixava sufocada. Causava tal abstinência, era seu vício, seu dom e sua maldição.
 Abrira a mochila de lona para ver o que ainda lhe restava: a tiara de um metal muito precioso, precioso demais para que ela vendesse. Ela entraria para sua coleção valiosíssima, aquela que não venderia nem que passasse necessidade. Viu também num embrulho um envelope  timbrado, perdido num lenço de seda real (que ela ia vender). O timbre era da República da Terra. A mensagem: um baile real na capital.
  Seus olhos iluminaram-se frente às oportunidades que vira. Um baile na capital, VIP, cheios de milionários dando sopa... Oportunidade mais que perfeita de dar mais um golpe perfeito!


  - Por que você acha que vamos achar a Vicky Valentine nesse fim de mundo? - perguntava Lena - Pra que você acha que ela se esconderia nesse final de mundo.
  - Pense um pouquinho Lena... Como você explicaria isso? - Agatha apontou para uma página recém-colada. Nela, uma foto grande de uma Vicky sorridente e debochada aparecia sob a recompensa de mil peças de ouro.
  - Oliver... - concluiu Lena - Então ela trabalhava pra ele...
  - E se eu estou vivinha da Silva...
  - É porque ela passou a perna no Oliver também... Meu Deus, que mulher bandida!
   Agatha sorriu satisfeita. Isso até se lembrar de um pequeno detalhe...
   - Se o cartaz da Vicky chegou até aqui...


  Não muito longe dali, a mulher de cabelos dourados também via o cartaz perplexa. Não só isso. Via pelo horizonte cavalos-de-fogo chegarem pela planície desértica. Ele a tinha encontrado? Impossível! Um de seus melhores atributos era fugir sem deixar rastros! Mas o exército de Oliver Gardner fora capaz de chegar até ali e a seguiria até o fim.
  Tarde demais... seu rosto era conhecido ali, e os habitantes picaretas daquele lugar certamente a entregaria... Não se ela fosse mais esperta e saísse daquele fim de mundo o mais rápido possível. Teria de barganhar com todas as suas armas... Ir à capital, onde Oliver não poderia ir...


 Lena tentava barganhar com um atravessador a maneira mais discreta de deixar aquele lugar. O mercador percebia o seu desespero e tentava arrancar o dinheiro que elas não tinham.
  - Seis moedas de ouro! Isso é um assalto à mão armada senhor! Não temos todo esse dinheiro!
  - Eu sei que a senhorita viaja com a Princesa do Ar...
  - Tudo o que posso pagar ao senhor é quinze moedas de prata - interveio Agatha - se o senhor quiser, posso assinar um documento, um título que o senhor pode cobrar quando apresentar ao meu reino!


  Ao lado delas, mais uma pobre alma deixava aquele lugar. Estava envolta de trapos imundos e não dizia uma só palavra e nem mostrava uma só parte do corpo que permitiria definir que fosse homem ou mulher. Apenas respirava fulgazmente, como se fosse asmático.
  A viagem não era nada confortável, o calor era intenso e o fedor dos animais da caçamba incomodova bastante. A carroça, que andava a passos de tartaruga parou de vez, seguidas por vozes truculentas.
  Agatha e Lena notaram que o condutor desceu da charrete e conversou duas ou três palavras. Em seguida, levou dois soldados da República da Terra que retirou a lona que as envolvia. Outros três forçaram as jovens a descer, elas relutavam em se identificar.
  Por baixo do véu, Agatha notou que o condutor fez um sinal afirmativo. Um dos soldados tirou o véu das duas e deu um sorriso afirmativo.
  O outro ser maltrapilho foi agarrado por dois policiais. Deu um pisão de pé em um, e rendeu o outro. Apontou uma pistola. Deixou cair seu véu. Revelou sua identidade.
  A cabeleira excessivamente loura, os olhos azuis faíscantes, a pele levemente dourada pelo sol, o semblante desafiador! 
  - Baixe a arma mocinha! - ordenou o soldado - Ou vai se arrepender!
  - Eu dou as ordens aqui! - repreendeu Vicky - Quer que eu estoure os miolos do seu amigo?
   Não. Vicky não dava as ordens. Em questões de segundos foi cercada por vinte soldados apontando pistolas para ela. Tinha de reconhecer que fora pega e pôr a pistola no chão.

terça-feira, 16 de março de 2010

     Agatha Tess abriu os olhos lentamente, o que não impediu que a luminosidade quase a cegasse. Vestiu o robe de cambraia verde e andou passos ligeiros e leves, como os de uma bailarina. Da sala da casa, vira Lena sentada no sofá, conversando com dois policiais.
    Sua presença foi logo notada pelo mais velho. Um homem de meia idade e barba grisalha. Ao seu lado, estava um mais jovem, de cabelos de um castanho ferruugem, anotando alguma coisa num bloco de notas.
 - Lamento Alteza! - desculpou-se o velho, depois de uma profunda mesura - Nunca na história de nossa cidade...
  Agatha levantou a mão pedindo para que parasse. Sofreu um golpe, aquilo era exclusivamente sua culpa.
 - O que levaram Agatha? - perguntou Lena.
 -Minha tiara real, um colar com um rubi e uma correspondência destinada ao Rei.
 - Como era a moça?
 - Não sei falar... Estava muito disfarçada... mas os olhos dela! Eles eram muito azuis... o cabelo não tenho certeza, parecia loiro. Do resto, não me lembro muita coisa.
  O jovem policial virou o caderno em que escrevia suas notas. Nele se viu um desenho muito bem feito. 
  - Co..co..como o senhor...
  - Só existe uma pessoa capaz de fazer isto. Vicky Valentine, a cobra do deserto... ninguém até hoje consegue pegar essa mulher!
 Agatha ergueu-se impetuosamente, como se sua vontade tivesse sido acendida por algo desconhecido. Então ela era Vicky Valentine, a mulher intocável, a quem ninguém na história daquele país havia conseguido.


  Ela entrou naquele bar que há alguns anos já havia frequentado. Mas desta vez não viera trabalhar (leia-se enganar alguém) e sim desfrutar dos prazeres da vida. Beber o melhor uísque, o melhor rum e ouvir as melhores músicas.
  Aquele rosto familiar sorria displicentemente sob o cartaz: "Procurada". Abaixo diversos crimes que ela praticara e que sorria de prazer ao vê-los, como se tivesse orgulho disso. Inúmeros assaltos, estelionato, falsidade ideológica, contrabando, curandeirismo, formação de quadrilha, etc, etc e etc. Mas hoje não estava ali para rir de seu próprio "currículo" e sim para gastar um pouco do dinheiro obtido da venda de um belo rubi.


 Oliver Gardner não era bem vindo ali, mas isso não significava que não era bem recebido, mesmo hipocritamente. Há anos a República da Terra dizia declarar guerra ao seu país, mas a cada dia, cada vez mais cidadãos do Império do Fogo se apropriavam da praia alheia. 
  Andava de um lado pro outro, possesso de raiva, descontando nos subordinados toda a raiva que sentia de si mesmo. Não era o primeiro, e nem seria o último a ser enganado por Vicky Valentine.
   - Maldita ladra! - repetia - Eu vou te encontrar, nem que seja no inferno!!
   
   Vicky atravessou pela porta, segura de si dos pés à cabeça. Os homens aglomerados sob a mesa de carvalho viraram automaticamente seus rostos quando viram a imagem conhecida:
  - Quem é viva sempre aparece, Vicky! - saudou um gordo e barbudo do meio da roda. Vicky se sentou numa das cadeiras da roda e espiou para ver qual era a boa.
  - Vai apostar, gata?
  - Dez moedas de ouro no 27 vermelho!
  - Tá cheia da nota hein, Vicky! - admirou-se um deles - Quem foi que cê enganou desta vez?
  - Um servicinho aí, bem legal até!  
   
   Perdia, ganhava, a vida era um jogo. Uma faca de dois gumes como ela. Mas uma faca poderia ficar cega... A porta foi escancarada escandalosamente por alguns soldados do fogo. Seus rostos foram direcionados justamente para a única mulher no saloon. 
  - Nem acredito que serei o primeiro a pegar Vicky Valentine, a cobra do deserto! 
    Trazia consigo um cartaz, prometendo mais quinhentas peças de ouro. Não se lembrava de nenhum bandido que valesse mais que isso. 
   A poeira invadiu o saloon, mas não do deserto. Dezenas de homens entrelaçaram-se, cada um tentando capturar a loira. Mas apesar de sua presença ser a mais marcante daquele local, ela conseguiu escapar rastejando tal e qual seu apelido, e ainda levando as moedas dentro dos bolsos de seus "companheiros".
    Sempre escapara, não importava como. Estava acostumada a dar golpes em todos: do simples operário ao fazendeiro rico. Sempre usando sua beleza natural e a inteligência desenvolvida pela necessidade. Mas agora ela enganara duas pessoas de uma vez, duas pessoas da realeza e tinha um exército inteiro no seu pé. Tinha ido longe demais?

quarta-feira, 10 de março de 2010

  No País de Agatha Tess, era absolutamente comum consultar-se com videntes, cartomantes e oráculos. Do camponês ao general, do operário ao nobre, até mesmo sua mãe, a Rainha, tinha um oráculo particular, que lhe orientava na administração do Reino.
   A cigana mirava com seus olhos azuis cristalinos, enquanto passava os finos dedos pela bola de cristal. A tenda toda cheirava a incenso enjoativamente doce, se a mulher não se apressasse, provavelmente Agatha ficaria asfixiada pelas finas fumaças.
    - Então a senhorita está aqui por que tem a cabeça confusa, princesa? - perguntou a cigana.
   Agatha confirmou com um aceno. Coincidência ou não, mas aquela desconhecida adivinhara um pensamento que nem ela mesma havia pensado. Desde que abandonara o Reino, essa era a palavra que resumiria sua vida: confusão.
   - Sua mão, querida, a sua mão.
   Agatha estendeu as mãos macias e perfumadas de princesa à cigana, que as apertou com um precioso tesouro. Agatha se reduzia a acompanhar passivamente a avaliação sobre seu futuro astrológico.
   - Vejo uma grande ferida! Uma grande confusão! A cabeça... não... que cabecinha nebulosa! Vejo... um ferimento... sangue.
   Mais uma vez a cigana adivinhara. Apesar de parcialmente oculta sobre as vestes, ela ainda sentia pontadas de dor no ombro, onde anteriormente havia sido atacada no deserto. 
   - Para curar uma grande ferida... precisa curar o corpo. A senhorita sofreu alguma ferida recentemente?
   - Fui atacada por falcões do deserto. - respondeu Agatha - As garras deles... rasgaram meu ombro. Ainda dói muito.
    A cigana tocou no curativo da Princesa. Ela soltou um uivo de dor, na certa, ainda não cicatrizara. 
    - Tem outra coisa, Madame Beaumont... - interrompeu Agatha. - Sou uma princesa do ar, mas tenho... dons de fogo.
     A cigana levantou uma sobrancelha visivelmente espantada com a revelação.
    - Quando, quer dizer... Você tem dom do fogo.
    - Acontece de vez em quando... Quando estou assustada e com medo...
   - Muito bem querida... O que você precisa para curar a ferida da alma e do corpo é de um mergulho nas águas termais sagradas... a única água que brota no deserto.

   No fundo da tenda, havia um compartimento com uma outra tenda. Lá havia uma enorme banheira feita em madeira com água fervendo. Dentro da banheira, algumas pétalas de flores e sais de banho. A mulher mandou a jovem retirar as vestes e guardá-las num cômodo mais ao fundo.
   - Fique o tempo que precisar querida... além disso... segure isso.
   A cigana deu-lhe um rosário de contas de madeira. Deu um sorriso afável e afastou-se.
   Como planejou, em pouco tempo, a menina adormeceu, entorpecida. Foi até o cômodo onde suas roupas estavam guardadas e revirou a mochila. Lá encontrou um colar real e um envelope com timbragem oficial. Colocou-os no decote do vestido e saiu à francesa.

    Não era fácil encontrar a ladra Vicky Valentine, a mulher mais esperta da República da Terra. Ganhava a vida dando pequenos e médios golpes, enganando os homens tolos com sua beleza, cantando em bares insalubres durante a noite e bebendo às custas dos clientes. Fugia de cidade em cidade, em cada uma delas dando um novo golpe, e escapando da polícia. Mas ele era o Príncipe do Império do Fogo! Nada era impossível para ele, nem encontrar a Senhora das Mil Faces.
    Seu novo esconderijo era denso pelos sete véus que passara até ver a silhueta de seus longos cabelos dourados. Vicky estava sentada em sua almofada de veludo, tragando um longo cigarro e contando maços de dinheiro, provavelmente obtido de forma ilícita.
   - Há quanto tempo não tenho a honra de receber a realeza! - saudou Vicky.
   - Como você sabia que era eu?
  - Nunca me esqueço dos cheiros das pessoas... especialmente daquelas que já passaram pelos meus braços - a ladra o abraçou suavemente e beijou o pescoço de Oliver.
   - Tenho um serviço pra você... pago bem...
   - Não quero Oliver... sabe que não trabalho pra ninguém... muito menos pra realeza. 
   - Tem uma pessoa que quero... eliminar...
   - Ora... mande um de seus homens... você não tem quase todo o planeta aos pés do seu país...
    - Se executar o serviço... pode ficar com o tesouro.
    Vicky, a pouco desinteressada, ficou com os olhos brilhando, faiscando de ganância.
    - Estamos falando de qual tipo de tesouro?
    - Tesouros reais... da Princesa do Reino Suspenso do Ar... E então?  
    
    Agora ela estava ali, com tesouros reais em suas mãos. Sua missão oficial estava inacabada, já que a menina ainda estava viva. Mas para ela isso não importava. Agatha era problema de Oliver e não era de seu feitio se envolver no problemas dos outros. Honrar compromissos? Isso não existia em seu vocabulário, afinal, ninguém mandou Oliver confiar nela. Seu papel era apenas pegar o tesouro e fugir dali, para aplicar um golpe em mais um tolo.

segunda-feira, 8 de março de 2010

     A estalagem aonde estava, com seus quartos de sequoia e seus hóspedes de origem duvidosa, não lhe dava o mesmo conforto que tinha no luxuoso palácio. Mas aquilo pouco lhe importava: O barco para a República da Terra sairia dali a poucas horas. Ainda bem! Já começava a cansar do café da manhã repleto de colesterol que lhe era servido a três dias.
     Lena tomava uma xícara de café com leite e lia atentamente o jornal. Nem notou quando Agatha chegou e se sentou, continuava com o olhar vidrado.
   - O que tanto você lê nesse jornal? - perguntou Agatha intrigada.
   Lena não lhe respondera. Apenas virou o jornal e colocou os dedos entre os lábios. 
   O rosto de Agatha estava estampado numa página inteira do jornal. Abaixo da foto um lide: PROCURADA. Os "crimes" foram especificados abaixo. Entre eles, a acusação de ter liderado a insurreição nas Geleiras do Sul e a pior: ser namorada de Julian, o "ursupador". O de Lena estava ao lado, porém bem menor, junto com o resto dos rebeldes.
   - Meu Deus Lena! - cochichou - O que a gente vai fazer? E se esse povo entregar a gente?
   - O problema não é esse povo. - concluiu Lena - O problema é o Exército do Fogo que já chegou aqui.
   Lena apontou para a porta por onde alguns soldados chegaram a poucos segundos. Eles se encaminharam para o balcão da estalagem e exibiram ao balconista as fotos. Lena e Agatha subiram de fininho para o quarto e pegaram seus poucos pertences.
    Precisavam de um plano. Ir de barco à República da Terra estava fora de cogitação. Era a oportunidade perfeita para serem pegas. Só restavam-lhe uma opção, e ela não seria nada fácil.
    Lena arquitetou o plano. Elas venderam a passagem a preço de banana a duas jovens viajantes e compraram outras duas, para viajar de uma maneira bem mais arriscada: montadas em quimeras.
   - Levem muita água e comida. - recomendou o vendedor - Atravessar o deserto é muito perigoso.

    Estavam no terceiro dia atravessando o Vale das Dunas. Assim era chamado o deserto que dominava a República da Terra. A água não duraria mais que um dia e a comida talvez nem desse para aquele dia. Viajavam em comboio com outras pessoas: algumas mulheres e homens pobres, além de pessoas de índole suspeita.
    O chão sob os pés começou a rastejar. Mas não fora o vento, a areia ou simplesmente o cansaço. O chão realmente tremia cada vez mais até derrubar algumas pessoas de suas quimeras. Os rostos das pessoas assumiram um tom de dúvida e desespero como se cada um deles esperasse que alguém soubesse a resposta. Lena, a mente que ali parecia a mais sensata, resolveu assumir o controle da situação e bolar algum plano.
   - Calma! - pediu a morena agitando os braços - Vamos ficar calmos e sair daqui!
   Mais um tremor se seguiu. Ninguém teve coragem de ver quando a terra se moveu sob os pés de um dos viajantes. Em poucos segundos, centenas, talvez milhares de pequenos pontos se moveram a partir dos pés. Três ou quatro segundos para sobrarem apenas ossos.
   - Merda! - resmungou Lena, puxando Agatha pelo braço. As sanguessugas do deserto podiam ser pequenas, mas eram as criaturas mais perigosas do deserto.
   O grupo se dispersou, correndo para qualquer lado. Seis ou sete pessoas seguiam-nas, prevendo que Lena era a pessoa mais inteligente do grupo, assim, chances de sobrevivência seriam maiores.
   - Pra onde vamos? - perguntou um homem, elegendo Lena como a líder.
   - Abismo do Medo - respondeu Lena com segurança - É o único lugar que as sanguessugas do deserto têm medo de ir.
   - Por qual motivo será? - perguntou sarcasticamente um dos integrantes - Lá é o Abismo do Medo! O lugar mais mal - assombrado do mundo! Se formos lá vamos morrer!
   - Se não quiser ir, então não vá! - concluiu Agatha - Devo presumir que você tem uma solução melhor, não?
    O rapaz balançou a cabeça negativamente até segui-los. A pouca comida foi deixada para trás já que poderiam atrair coiotes e outros caçadores.
    
   A noite não tardou a chegar. Acampar foi necessário, assim como fazer uma fogueira. O frio noturno do deserto era equivalente ao frio das geleiras. Agatha cedeu sua barraca à uma mulher grávida e preferiu dormir num saco de dormir improvisado no chão.
   - Eu ouvi boatos desse lugar! - contou Agatha à Lena e  ao rapaz incrédulo da primeira ocasião - Dizem que abriga as almas perdidas na guerra!
   - A Guerra do deserto, sim! - contou o rapaz - Há cem anos, o Exército do Fogo tentou invadir a República da Terra, que ainda se chamava Reino da Terra. Foi a primeira vez que o Exército do Fogo foi derrotado... Mas não por inimigos. Dizem que suas almas pecadoras foram devoradas pelos espíritos das trevas... E então... desde aí... elas atormentam todos os viajantes que passam por aqui!
    Agatha olhou para os lados temerosa. A chama bailando na escuridão deixava aquele abismo ainda mais assustador.
   - Isso é tudo lenda! - contrapôs Lena.
   - A Guerra é lenda, senhorita Brown? 
   - Não da guerra. - esclareceu Lena - Realmente ela ocorreu e foi essa guerra que deixou o mundo como ele é hoje. O que eu digo é que... o Exército do Fogo realmente foi derrotado, mas não por espíritos malignos ou algo do tipo. Morreram aqui devido a questões climáticas. Além disso, alguns pesquisadores aceitam a hipótese de terem sido devorados por animais e mesmo canibalismo, devido à fome. 
    - Então senhorita sabe-tudo, por que as ossadas dos homens não foram encontradas?
   - Simplesmente porque estamos num deserto. As areias devem ter soterrado as ossadas e não sou eu quem digo... são estudiosos da Universidade da Cidade da Montanha, a mais importante Universidade da República da Terra. Mas reconheço que isso é um mecanismo bem potente contra a invasão de soldados do Exército do Fogo...
    - Eu não acredito que uma pessoa possa ser tão cética como você!
    Os dois replicavam e treplicavam nos argumentos um do outro. Agatha acompanhava à discussão movendo os olhos de um lado a outro. Mas quando o bate-rebate estava em seu auge, ela tentou levantar a mão, inutilmente.
    - Gente... - sussurrava Agatha. Mas os dois continuavam a discutir. - Galeraaa...
    - O que foi Agatha? - perguntou Lena, um pouco irritada.
   - Vocês não ouviram esse barulho?
   Lena fez conchinha com as mãos nos ouvidos. O rapaz repetiu o mesmo movimento.
    - Foi só sua imaginação Agatha, quando a pessoa ainda não despertou totalmente...
    O rapaz fez um Pssiu. Ele também ouvira algo.
    O som parecia algo rasgando o ar. Respiraram fundo. Mas em um tempo não estimado, algo segurou a princesa pelos ombros. Quando ela deu por si, estava a alguns metros do solo, os ombros sangrando.
   - Me ajuda! Gente, me ajuda! - gritava Agatha do alto. Vira seu capturador. Um pássaro gigante preto com cinza que cravava suas fortes e afiadas garras em seu ombro. Sentiu a carne despedaçando e segurou com as forças que tinha nas pernas finas e secas da criatura.
    No solo, Lena e o outro se jogaram no chão na tentativa de não serem capturados. O garoto tentava afastar com uma tora de madeira queimando em brasa os pássaros. Pessoas assustadas saíam das barracas, mas foram recomendadas pelos dois a permanecerem lá.
   - O que é isso? - perguntou o jovem.
   - Falcões do deserto! Noite de caça...
   Nove indivíduos sobrevoavam a área, visivelmente almejando um dos dois. Agatha voava em círculos, urrando de dor.
   - Por que eles ainda estão aqui?
   - Só caçam de uma vez! - respondeu Lena - Só vão embora quando pegarem um de nós.
    O garoto pegou uma das tochas da fogueira e correu desesperado.
   - Ei Lena!! Vou distrair eles! Atira neles!
   - Grégor! Você... 
    Mas o garoto correu com a tocha levando em seu encalço todos as aves. Lena mirou com o arco e flecha. Ela disparou pelo forte vento do deserto.
    A princesa fechou os olhos, quando os abriu estava no chão, com seu atacante atingido no olho.

 Acordara em uma confortável tenda. O calor era insuportável, mas não tanto quanto o deserto. Lena estava no mesmo quarto, arrumando a mochila com os incontáveis livros que carregava.
   - Onde estamos? - perguntou Agatha.
   - Cidade das Dunas! Você foi fortemente envenenada pelas garras dos falcões, demorou pra tirar o veneno! Mas mesmo assim, estou impressionada! Faz três dias e já cicatrizou.
   - Três dias! - admirou-se Agatha.
   - Os habitantes ficaram felizes ao saber que a Princesa está aqui! Trouxeram comida, coma o quanto quiser!
    Lena bateu a porta. Provavelmente ficaria um tempão na biblioteca, lendo. Mas enquanto a amiga se divertia, à sua maneira, Agatha não queria ficar à margem da diversão. Quem sabe dar uma andada pela cidade.
    
    Não parecia muito rica, era recoberta de areia, com pequenas casinhas em madeira. Mesmo assim, abarrotada de gente, a maioria aglomerada em torno de mascates comprando tudo. Mas diante daquela paisagem monocromática, era uma tenda colorida que lhe chamava a atenção.
    Mal não faria entrar. Era um ambiente com um forte cheiro de incenso no ar. Cortina de miçangas ocupavam a porta. No mais, a tenda era forrada por tecidos vermelhos e alaranjados. Na mesa, a cigana passava seus dedos finos sobre a bola de cristal empoeirada.
   - Hã, oi! - saudou Agatha, sem jeito.
   - Sente-se Princesa! - disse a cigana.
   Agatha se aproximou ainda mais. Sob os dedos finos, anéis de pedras grandes e falsas. Um turbante na cabeça e uma voz fina e etérea.
    - O que deseja saber, minha princesa? 

segunda-feira, 1 de março de 2010

  Suas feições continuavam quase as mesmas. Cabelos ondulados, não mais soltos ao vento, mas sim presos caprichosamente num coque. Não exalava o odor de peixe recém-pescado ou da brisa do mar, suas mãos delicadas eram embalsamadas com essência de rosas de fogo. Decididamente, quem nunca soubera do passado de Angeline Leone, não imaginaria que ela era uma simples caiçara com sonhos altos demais para sua vila.
     - Você cresceu. - comentou Angeline - Está bonita também. Ian já lhe pediu em noivado?
    - Não sei se vai - respondeu Lena, enquanto soprava a xícara de chá de jasmin extremamente quente - Antes de terminar a escola ele decidiu ajudar o pai a pescar em alto mar, onde ainda tem peixe bom.
   - A Vila continua pobre... como sempre - lamentou Angeline.
   - É... poucas pessoas continuaram os estudos... eu terminei o Ensino Básico e fui contratada para trabalhar no Governo Provincial. 
   - Que bom! - sorriu a irmã. Ela estava olhando agora para seu lado esquerdo, onde Agatha e o filho comiam sanduíches com chocolate quente e riam - Você sempre foi a pessoa mais inteligente da nossa vila. Ainda quer ser médica?
    Lena concordou com um aceno. Em seguida olhou pra tudo na casa e pensou se os críticos da irmã vissem aquilo. Como ela conseguira alçar suas asas além daquela pequena Aldeia.
   - E você?
   - Foi difícil no começo, eu... sofri bastante Lena - contava Angeline, com lágrimas tímidas saídas de seus olhos - Mas então eu conheci o Francis e ele me deu uma vida nova... Me transformou em uma dama... em uma mulher que não pode ser passada para trás...
    Entre as duas fez-se um silêncio. Nem mesmo o gordo café posto na mesa foi tocado nesse período. Apenas ouvia-se a risada do garoto devido às cócegas feitas por Agatha.
   - Eu te escrevi... todas as semanas eu escrevia. Depois passei a escrever todo mês e depois só no seu aniversário... Você nunca me respondeu, achei que...
   - Papai pegava a correspondência e queimava. Ele nunca me deixou ler, nunca.
   - Ele continua com raiva de mim, não é mesmo?
   - Ele está doente Angeline, muito doente. Está perdendo o juízo desde que você foi, se você o visse...
   - Não pode me pedir isto, Lena...
   Angeline levantou-se da cadeira e rumou na direção onde o filho brincava com Agatha. Mas parou a meio caminho, quando um homem muito bonito entrou na sala. Vestia por cima do uniforme, um sobretudo cor de vinho. Era um soldado.
   - Eu não sabia que estava com visitas querida! - comentou o marido - Sou Francis, marido dela, muito prazer.
   Lena apertou sua mão. Agatha, mais longe, o cumprimentou com a cabeça. 
  - Essa é a Lena, Francis, a minha irmã.
   Os olhos verdes de Francis se iluminaram. Ele abriu um largo sorriso, como se estivesse contente por finalmente conhecer alguém da família da esposa.
   - Foi um prazer, mas estamos indo! Vamos Ag... Anna!
   Agatha estranhou ser chamada de Anna, mas compreendeu ser aquilo apenas um artifício para manter sua identidade em segurança. 
   - Esperem! Não vão ficar? - perguntava o marido. Angeline permanecia imóvel desde a hora em que o marido chegara.

   - Você ainda vai a algum lugar?
   - À República da Terra. - respondeu Agatha - Mamãe pediu pra entregar essa correspondência.
    Lena se lembrou que Agatha havia mentido a Dimitri que iria à República da Terra. Sorte ou não, a Rainha imediatamente mandou uma correspondência a ser entregue diretamente ao Rei, juntamente com um outro envelope que Agatha ainda não abrira.
    - Poderíamos alugar uma charrete e ir pela fronteira, o que acha?
    As duas continuaram então, pelas ruas movimentadas da capital da província, a fim de alugar uma charrete. As indas e vindas de pessoas apressadas e a determinação das duas de cumprir o compromisso assumido por Agatha foram motivos para que ninguém notasse a capa do Jornal Provincial e a manchete: "Princesa do Reino do Ar desafia o Império do Fogo!".